sábado, 30 de dezembro de 2023

Cuscuz, critério e crítica

"Cuscuz paulista é a pior comida do Brasil."

Por Marcos Nogueira

É mesmo, é? Você concorda? Discorda? Acredita? Quem disse isso aí? Dá para confiar?

A condenação categórica do cuscuz "sudestino" veio do TasteAtlas, plataforma colaborativa que se tornou fonte preferencial de pautas da imprensa especializada em comida.

O rolo do cuscuz (uma treta antiga da internet, opondo paulistas ao resto do país) rendeu manchetes. Revoltou a Ana Maria Braga e foi assunto por dias nas redes sociais. Um debate tão produtivo quanto uma turbina de avião girando em falso: faz um barulho do inferno, consome energia e não leva a lugar algum.

Volto ao tema porque, quando o ano está para terminar, é tradição no jornalismo encher linguiça com retrospectivas e balanços. Não ouso desafiar a tradição e afirmo: 2023 foi o ano do TasteAtlas.

Ouvi alguém aí dizer "grande porcaria"?

Concordaria, se o fenômeno fosse restrito ao cuscuz paulista e aos debates frívolos no chiqueirinho do Elon Musk.

Ocorre que as listas bizarras de comida –repare que até evitei usar o adjetivo "idiotas" para não perder engajamento– são apenas uma faceta periférica de algo muito, muito grande.

Trata-se de como a informação circula e de que forma isso afeta a sociedade. O cuscuz paulista é irrelevante, sinta-se à vontade para descer o lenho.

Ressoa na minha cabeça o artigo de Suzana Herculano-Houzel publicado, aqui na Folha, no dia de Natal. A neurocientista afirma que a tecnologia avançou mais rapidamente do que nossa capacidade de compreendê-la e, por conseguinte, empregar adequadamente as ferramentas que nós mesmos criamos.

O caso do TasteAtlas é um exemplo tardio de como a imprensa, desde muito maravilhada e estupefata com a tecnologia, está perdida.

Qualquer um entra na plataforma, cadastra-se e vota. Se os fãs da picanha se organizam para uma ação em massa –ou são direcionados para tal por outras redes sociais–, cravam no TasteAtlas que a carne é a melhor comida do mundo.

Foi o que também aconteceu. A informação, replicada por Deus e o mundo, está lá com jeitão de verdade verdadeira.

Então suponhamos, num exercício delirante de imaginação, que a picanha se candidate à Presidência da República e perca. Virão os picanhistas contestar o resultado, porque não é possível, foi roubado, tem que melar tudo e S.O.S. Forças Armadas.

Quando a imprensa profissional –no caso, todos os portais brasileiros de alguma relevância– reproduz sem critério as listas enviesadas e fuleiras do TasteAtlas, ela assina um termo de rendição.

Reconhece que é refém da informação de baixa qualidade feita sob medida para gerar ruído improdutivo na internet. Assume que lhe faltam recursos para produzir, ela própria, algo melhorzinho.

E olha que nem ousei perscrutar o estrago que a inteligência artificial promete fazer.

Enfim, meu espaço está acabando e 2023 também. Resistamos. Sirvamos cuscuz paulista na ceia do Réveillon. O negócio é morrer atirando.

Fonte: Blog Cozinha Bruta (https://www1.folha.uol.com.br/blogs/cozinha-bruta/2023/12/pior-cuscuz-do-brasil-coroa-o-ano-das-listas-bizarras-de-comida.shtml)

domingo, 3 de dezembro de 2023

Oficina de Humor na Piauí Herald



"O trocadilho é o coentro do humor!" (Cappelaro, Afonso). "Melhor não!" (Roberto Kaz). Com essas e outras polêmicas, sacadas e histórias aconteceu a 1ª Oficina de Humor - Piauí Herald. Obrigado aos mestres pela dedicação e aos cosplay... ops, colegas pela paciência! WORKSHOP VALEU DEMAIS! @afonsocappelaro @real_betokaz_oficial_vale_esse @revistapiauí #festivalpiaui

segunda-feira, 15 de maio de 2023

Sobre Mike Davis e o Brasil


"Fronteira urbana" chegou ao fim, diz Davis

Em livro sobre "favelização" mundial, americano diz que expansão das cidades está no limite e critica políticas brasileiras

Em Nova Déli, na Índia, as favelas incham 400 mil moradores por ano. Quilômetros abaixo, em Mumbai, os favelados já somam 12 milhões de pessoas. Em proporção, o primeiro lugar fica com a Etiópia, onde 99,4% de sua população urbana mora em habitações precárias. E nos cortiços de Lima, no Peru, a média é de 93 pessoas para cada latrina.

Esses e muitos outros exemplos compõem o quadro apocalíptico do livro "Planet of Slums" (planeta das favelas), publicado neste mês nos EUA. Nele, o ensaísta Mike Davis analisa por que o fenômeno da migração para a área urbana se transformou num caos de cerca de 200 mil favelas e 1 bilhão de pessoas amontoados pelos países do Terceiro Mundo.

O Brasil e a África do Sul, com os EUA não muito longe, lideram no mundo a tentativa de substituir a segurança físico-arquitetônica para as classe médias pela justiça social aos pobres

O problema-chave, segundo Davis, é que as grandes cidades do Terceiro Mundo não estão mais crescendo empurradas pela demanda por mão-de-obra, mas se dilatando pela reprodução da miséria, sem uma resposta adequada do poder público.

O resultado é que o processo de favelização virou sinônimo de urbanização. Um dos exemplos do livro é São Paulo: em 1973, as favelas paulistanas abrigavam apenas 1,2% da população. Ao longo dos anos 1990, o salto foi para 16,4% de seus moradores.

Ex-caminhoneiro e de formação marxista, Davis, 60, ganhou notoriedade depois da publicação de "City of Quartz" (cidade do quartzo), um estudo já considerado clássico sobre a história de Los Angeles. Leia, a seguir, trechos da entrevista concedida à Folha:

 Folha - Seu novo livro descreve um processo aparentemente irreversível de favelização dos países mais pobres. Chegamos a um ponto sem volta para resolver a questão habitacional?

Mike Davis - Claramente, de acordo com especialistas em habitação de quase todos os países pobres, chegamos ao final da fronteira de áreas livres ou quase livres para ocupação. Esse é um fato da nossa época, sobretudo porque tantos governos e instituições internacionais continuam com a idéia de que o pobre tem acesso à terra e pode resolver a crise habitacional por meio de sua própria determinação e engenho. Mas o dia da ocupação heróica acabou. A ocupação tradicional, definida estritamente, é agora apenas possível em locais residuais e perigosos, onde inundação, falhas no terreno ou proximidade a depósitos tóxicos fazem com que a área seja quase sem valor, e a vida, uma constante luta contra o desastre. Em todos os outros lugares, a terra periférica é uma mercadoria -legal ou ilegalmente pertencente a especuladores, políticos ou entidades tribais que vendem a terra para residentes pobres.

As pesquisas mostram uma convergência perigosa de custos habitacionais crescentes (o fim da fronteira e da terra ocupável) com a supersaturação de setores econômicos informais

Essa "urbanização pirata", como tem sido chamada várias vezes, é efetivamente a privatização das ocupações. Pessoas muito pobres, sejam filhas da cidade ou migrantes do interior, atualmente alugam seu pequeno barraco (geralmente de moradores de favela mais antigos e ligeiramente mais ricos) ou são forçadas a construir em lugares precários ou nas regiões limítrofes, onde os custos de transporte anulam as vantagem da terra livre ou barata. Na habitação, assim como na economia informal, testemunhamos o que pode ser chamado de "marginalização dentro da marginalidade".

Folha - O sr. afirma que, em algumas cidades, já é impreciso o uso do termo periferia, pois as favelas se tornaram o centro da vida urbana. O que acontece quando uma cidade atinge esse ponto?

Davis - Ninguém sabe. A periferia, obviamente, assume diferentes formas. Em alguns casos, os pobres estão seguindo os empregos, o que, suponho é a melhor opção. Em outros casos, estão simplesmente exilados pelo alto custo das áreas ou expulsos pela renovação das favelas. O deslocamento de uma borda para o centro absorve crescente e quase insustentável quantidade de tempo e dinheiro. Em Nairóbi e em outras cidades africanas e asiáticas, os pobres gastam mais em transporte do que em moradia, medicamento ou em educação para suas crianças. O grande problema da forma urbana é esta: urbanização que não consegue criar urbanismo, que simplesmente empurra as pessoas mais para fora (consumindo valiosas terras agricultáveis e reservas ambientais no processo) e fracassa em fornecer qualquer aparato de integração da cidade tradicional. Todas as contradições da suburbanização dos países ricos se tornam exponencialmente maiores nas cidades pobres.


Folha - Recentemente o Exército interveio em algumas favelas do Rio, atraindo apoio de parte da classe média. A segurança pública deveria ser a grande prioridade?

Davis - Em primeiro lugar, "segurança pública" é uma definição enganadora. Operações militares e prisões em massa simplesmente agravam a insegurança urbana no longo prazo. Ao menos que se esteja preparado para exterminar classes inteiras de pessoas, a criminalização da desigualdade simplesmente armazena o problema em prisões desumanas, onde finalmente será exportado de volta para as ruas de uma forma mais violenta. Além disso, o crime de rua é sempre pior onde a polícia é mais corrupta e e sem regras. Os maus policiais são o maior problema criminal do mundo. Na forma como entendo o Brasil, a raiz mais profunda da "insegurança" -à parte dos níveis fantásticos de desigualdade socioeconômica- é que os pobres universalmente vêem a polícia como incorrigivelmente corrupta, predadores ao invés de protetores. A ditadura declarou guerra contra as favelas porque as viam como incubadoras da subversão; a ditadura foi substituída pela democracia burguesa, mas a guerra nas favelas tem continuado de forma incessante, e os militares mantiveram muito de sua liberdade para operar sem consideração aos direitos humanos.

Claramente o Brasil e a África do Sul, com os EUA não muito longe, lideram no mundo a tentativa de substituir a segurança físico-arquitetônica para as classe médias pela justiça social aos pobres. Obviamente, é um círculo vicioso: quanto mais as classes médias se retraem do espaço urbano público e cidadão -ou quanto mais eles permitem que a polícia e os guardas privados ajam foram da lei- mais os pobres acreditarão que a cidade está em um estado de guerra, com as gangues tão legítimas como governo quanto o Estado.

Folha - Como o sr. explica o paradoxo, identificado no seu livro, de que muitas cidades do Terceiro Mundo cresceram apesar da decadência econômica?

Davis - Ninguém pode explicar totalmente esse paradoxo, mas a resposta simples é a subdivisão da pobreza -o que chamo de "involução urbana". À medida que as pessoas se amontoam em nichos de sobrevivência informal -ambulantes, diaristas, prostituição, serviço doméstico, pequenos crimes etc.- mais pobre a massa se torna. Sei que [o economista peruano Hernando] De Soto e outros populistas neoliberais acreditam que o microempreeendedorismo pode fazer milagres, mas isso é apenas verdade em casos isolados. Sempre será possível identificar milionários que eram mendigos anos antes, mas isso negligencia o número muito maior de pessoas que eram operários e funcionários públicos e hoje são mendigos. Não há evidência em escala macro de que a economia informal é um motor de crescimento ou um futuro viável para os pobres da cidade.

O meu livro argumenta que, pelo contrário, as pesquisas mostram uma convergência perigosa de custos habitacionais crescentes (o fim da fronteira e da terra ocupável) com a supersaturação de setores econômicos informais (o problema da "involução"). Então o que acontece? O pior exemplo é Kinshasa (Congo, ex-Zaire), uma cidade com grande espírito, mas em condições indescritíveis de negligência, onde as crianças são deixadas na rua porque as famílias não podem mais ter um nível mínimo de sobrevivência.

Folha - O sr. cita um programa da administração do PT em São Paulo para mostrar o fracasso da política apoiada pelo Banco Mundial (Bird) de melhorar favelas. Por que não é um caminho viável?

Davis -As estratégias contemporâneas de habitação e desenvolvimento econômico adoram uma estratégia "de perfumaria". Deixando de lado o números de exemplos em que "favelas-modelo" financiadas pelo Bird se transformaram em tudo menos em modelo, os sucessos dessa estratégia são quase insignificantes na escala macro: levaria séculos para alcançar justiça habitacional ou "empoderamento" nesse ritmo. No melhor caso, o Bird e os governos reformistas fornecem apenas recursos suficientes para promover a mobilidade econômica de uma pequena fração da classe trabalhadora: recompensar membros do partido, cooptar possíveis ativistas e vencer a próxima eleição (ou dar a ONGs colaboradoras credenciais para restituir aos seus doadores). É um mundo de pequenas fábricas de filantropia e auto-ajuda que dificilmente faz a sociedade progredir.

Folha - . Apesar do amplo espectro ideológico dos governos do Terceiro Mundo, parece que o sr. não encontrou nenhuma política habitacional eficiente. É um sinal de que a esquerda e a direita falharam ou a culpa é sobretudo do capitalismo globalizado?

Davis -De certa forma, você me pegou aqui. A solução -de forma abstrata, pelo menos-tem de ser um sistema que preserva todos os elementos criativos de autoconstrução com um aumento radical de investimento social (na forma de compra de materiais, serviços de engenharia e desenvolvimento de infra-estrutura). Não há uma forma prática de solucionar a crise urbana em lugar nenhum sem uma verdadeira taxação progressiva, controle de desigualdade e do consumo de ostentação e controles draconianos sobre a especulação imobiliária. Isso ocorreu em Cuba no início (embora desviado pela crescente dependência dos modelos soviéticos e pelo embargo americano) e está acontecendo em Caracas, de certa forma, hoje. Posso estar errado, mas não creio que o PT já teve uma posição ou a vontade de fazer uma reforma fiscal radical ou limitar os privilégios dos ricos.

Folha - O sr. argumenta que a "manhattanização" (verticalização) das favelas cariocas é parte de uma tendência mundial de falta de espaços nas metrópoles. Quais os problemas -sociais e ecológicos- que isso acarreta?

Davis - A densificação é positiva porque é ambientalmente eficiente. A densificação é ruim quando acompanhada com o espalhamento e a destruição do espaço verde e dos pulmões da cidade. Rio e Istambul são exemplos fascinantes onde favelas baixas e "gecekondus" se tornaram arquipélagos de mini-Manhattans. Este é um desafio para planejadores e a arquitetura: a favela que almejam subir para o céu.

Os problemas são imensos, mas as oportunidades também. Todas as cidades precisam de um laboratório do futuro -um bairro onde crianças, poetas e utopistas possam brincar com o futuro. O Rio poderia congelar os aluguéis e os valores de propriedade de uma favela, retirar a polícia e convidar os cidadãos a perseguir seus sonhos. Uma favela convertida em estudo de caso, em que os arquitetos e urbanistas entram e saem, mas deixam o poder de decisão nas mãos dos moradores. Com o tempo, as pessoas vão desenvolver fantásticas soluções e projetos, que os outros podem repetir ou melhorar. Talvez até os ricos sejam tentados a se mudar de seus complexos fortificados.

Folha - De acordo com o sr., o racismo teve um papel importante na definição sobre quem mora onde. Qual é a importância da discriminação racial para a "favelização"?

Davis -A raça, sempre. Mas as favelas, precisamente por causa de sua energia inter-racial e intercultural, são os dínamos de nossa cultura planetária. Em Los Angeles, as indústrias da música e da moda mantêm espiões nos guetos e "barrios" para identificar as tendências que irão eventualmente se espalhar para os subúrbios e as classes médias. Além disso, a sensibilidade da diáspora negra fornece uma estrutura de sentimento para a juventude pobre urbana (e muitos dos mais ricos) em cidades de quase todos os lugares. As favelas e cortiços são incrivelmente locais e paroquiais, mas também são universais.

In Memoriam Mike Davis (1942-2022) Estudioso-ativista, historiador pioneiro da classe trabalhadora norte-americana e crítico do aparato econômico, político e militar.

Fonte: Entrevista a Fabio Maisonnave para a Folha de S.Paulo em 26/03/2006 https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mundo/ft2603200606.htm

 

domingo, 14 de maio de 2023

Neuroplasticidade infantil

"Cada canto do cérebro fala com os outros, as crianças até dois anos vivenciam sinestesia: sintam cheiros de cores, ouçam sons de cheiros, vejam cores em melodias.

A gente vai crescendo e, como quem segue marcas de pneu numa estrada de terra, vai se apegando a certos trajetos. 

Enquanto o cérebro infantil é um campo aberto em que se pode ir pra qualquer lado –e invariavelmente pra vários ao mesmo tempo–, o cérebro adulto fixa suas malhas ferroviária e rodoviária, constrói sólidas estradas e viadutos por onde os pensamentos irão seguir pelo resto da vida. 

Amadurecer é um profundo processo de emburrecimento."

(Antonio Prata, Folha de S.Paulo 14/5/2023)

segunda-feira, 9 de janeiro de 2023

Domingo não vi nada na TV...


 

quinta-feira, 22 de setembro de 2022

Carro, o pior investimento do mundo

"Não se nasce Amsterdam, torna-se Amsterdam." (Simone de Beaucyclete)


(Por Leão Serva, 26/09/2016 na Folha de S.Paulo)

Quinta-feira (22) foi o "Dia Mundial Sem Carro", mas os congestionamentos não diminuíram. O uso do automóvel para deslocamentos nas grandes cidades é uma burrada imune aos alertas, como o cigarro, que resistiu até o fim do século 20 às evidências de que causa câncer. A propaganda de carros continua oferecendo virilidade e glamour, enquanto entrega congestionamento, estresse, doenças e aquecimento global.

É por isso mesmo surpreendente ver que segue constante o percentual das pessoas que dizem reduzir de alguma forma o uso do carro. Desde a pioneira pesquisa feita pelo sociólogo Antônio Lavareda para o guia "Como Viver em São Paulo Sem Carro" (2012) até o levantamento divulgado pelo Ibope na semana passada, os números estão constantes em torno de 50%. Ou seja: metade dos moradores da maior cidade do Brasil buscam jeitos de usar menos o automóvel.

Paulistanos deixam carro em casa

Há muitas razões para isso. Se uma pessoa pensar direito não usará carro próprio para se locomover. Em primeiro lugar, tem a irracionalidade do próprio hardware: ele gasta cerca de 95% do combustível para levar a si mesmo. Faça a conta: um veículo médio pesa cerca de 1,5 mil quilos. E o motorista, 75kg (5%). E os carros levam geralmente só uma pessoa. Quer coisa mais irracional?

A loucura é ainda maior se pensarmos no uso que fazemos do automóvel. Os usuários em São Paulo andam em média 20 km por dia, em viagens de duas horas (os números não são muito diferentes em outras grandes cidades). As demais 22 horas do dia, o carro dorme (92% do tempo). Calcule se o preço de compra fosse investido: você admitiria que seu banco pagasse juros apenas por duas horas do dia? É por isso que uma empresa financeira norte-americana, Morgan Stanley, chamou o carro de "o ativo mais mal utilizado do planeta".

Quer mais? Os bancos não pagam juros apenas por duas horas do dia. Em verdade, remuneram os investimentos por todos os 365 dias do ano. Então, se você investe o valor do carro, digamos R$ 40 mil, depois de um ano pode ter algo como R$ 45 mil. Mas se você comprar um carro, doze meses depois ele vale apenas cerca de R$ 32 mil.

Além de perder 20%, anualmente o "possante" ainda custa mais. O IPVA, imposto obrigatório, custa em torno de 2,5% do valor do veículo (R$ 1 mil para nosso exemplo); o seguro custará algo em torno de 4% (R$ 1.600 mil). E, infelizmente, carros precisam de manutenção, cerca de 3% do custo do veículo: some mais R$ 1.200 mil. Ops: só para existir, o veículo já está custando quase 10% do preço, além da desvalorização de 20%. Ou seja, se o banco paga 15% sobre o investimento, o carro cobra 30%...

De todos os custos associados ao uso do automóvel, talvez os mais absurdos sejam os indiretos: os incentivos fiscais que os governos dão para beneficiar quem usa carros. Em um artigo publicado no site "The Atlantic", Edward Humes calcula que o custo da gasolina deveria ser cinco vezes maior que o atual (no Brasil, a diferença é subsidiada). Veja ainda quanto sua prefeitura gasta com construção de pontes e avenidas, asfaltamento de ruas, hospitais para vítimas de doenças relacionadas ao uso do carro

Os governos usam dinheiro de todos para agradar os donos de automóveis, geralmente mais ricos. É isso que torna mais lenta a redução do uso dos carros particulares nas grandes cidades.

quinta-feira, 8 de setembro de 2022

Sobre as Eleições 2022

 "Quem vota em político que libera armas
também puxa o gatilho."

(Flávia Boggio, 8/9/22)

domingo, 12 de junho de 2022

Crônica que gostaria de ter escrito (1)

Ricardo Araújo Pereira - 12/06/2022


Se eu tiver de indicar o ponto em que as coisas começaram a correr mal, diria que foi quando o caixa do supermercado me perguntou:

"Deseja um saco?"

Como vim a verificar mais tarde, é uma questão que a maior parte das pessoas não considera problemática, mas tenho uma opinião diferente.

"Não desejo. Mas quero."

"Como assim?"

"Perguntou se eu desejava um saco. Não creio que possa dizer que eu desejo um saco. Eu quero um saco. Mas desejar parece-me um verbo demasiado forte."

"Ora essa. Por quê?"

"Julgo que não é possível desejar um saco. A menos que se sofra de uma patologia invulgar. A ideia de desejar um saco tem uma óbvia sugestão libidinosa que é francamente perturbadora. Eu limito-me a querer um saco."

"Disparate. Desejar e querer são em larga medida sinônimos. Claro que ambos têm várias acepções. Mas mesmo a que assinalou, a da atração física, é comum aos dois. Talvez o verbo querer até seja mais vezes usado nesse contexto específico. Repare que o conhecido soneto de Camões, que começa com o verso 'Amor é fogo que arde sem se ver', diz, a certa altura: 'É um não querer mais que bem querer'. Viu? O poeta opta pelo verbo querer. E não há ocorrências do verbo desejar no poema."

Atrás de mim formou-se uma fila que começava a impacientar-se. Um senhor que tinha o carrinho de compras cheio resolveu intervir:

"Escutem, não há problema. Eu não sei se este senhor deseja um saco ou se quer um saco. Em qualquer dos casos, o melhor é dar-lhe, que eu tenho congelados no carrinho."

E chegou o gerente.

"O que se passa?"

Respondi eu:

"Este funcionário perguntou-me se eu desejava um saco. À frente de toda a gente. Estão ali crianças e tudo."

"E o senhor não deseja um saco?"

"Não. Talvez tenha acontecido uma vez ou duas, durante a adolescência, mas na adolescência tudo é motivo de desejo, como sabe. Até um saco. Eram outros tempos. Agora eu quero um saco."

"Mas desejar e querer é igual", disse o caixa.

"Creio que compreendo o problema", disse o gerente. "Será justo dizer que o senhor precisa de um saco?"

"Julgo que sim."

O funcionário do caixa interveio de novo:

"Não faz sentido. Sobretudo à luz do tema 'Como a abelha/ Necessita de uma flor/ Eu preciso de você', de Roberto Carlos."

Era bem observado. Por isso vim embora com as compras na mão.


segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022

A política está de mau humor

E isso até seria cômico, se não fosse trágico

(Por Lygia Maria, na Folha de S.Paulo em 21/02/2022)

Uma das piores consequências da polarização político-ideológica é a perda do senso de humor. Nem falo de piadas preconceituosas ou de baixo calão. Falo da ironia fina, dos trocadilhos, dessa atividade linguística que torna a vida mais palatável e que também nos faz pensar. Você, caro leitor, já deve ter passado por isto ultimamente: soltou um chiste inofensivo e acabou soterrado por problematizações.

Há séculos filósofos falam sobre o riso. Freud disse que o humor é um mecanismo de economia de energia psíquica: obtemos prazer, em vez de sofrer, em situações ruins. Para Nietzsche e Bataille, o humor possibilita formas de pensamento não ferrenhamente apegadas à razão: já que ela, apenas, é incapaz de lidar com o sofrimento existencial. Daí surgem as comparações entre o humor, a arte e o erotismo.

A poesia é uma erotização da linguagem, já que retira dela sua função meramente utilitária: a comunicação. Da mesma forma, o erotismo arrefece a função utilitária do sexo: a procriação. Estetizar é erotizar, e vice-versa. Os trocadilhos, os duplos sentidos, a ironia, toda essa fricção de palavras e ideias díspares causam ruídos na comunicação, mas produzem novas formas de pensar e de sentir a realidade. Por isso, o humor é uma forma do ser humano se tratar como obra de arte. Ou seja, de escaparmos da objetificação, de nos aceitarmos como falhos, incompletos, e, assim, produzir prazer físico, estético e mental.

Não é à toa, portanto, que a polarização ideológica está minando nossa capacidade de rir e de fazer rir. Cada lado tem políticos de estimação, seres perfeitos, quase deidades. Seus fiéis seguidores viram sacerdotes à caça de pecados não apenas dos inimigos, mas dos próprios pares. Claro que o humor não cabe nisso. Afinal, com ele, ressaltamos nossa condição mais humana e menos divina, percebemos nossas contradições, idiossincrasias, e essa postura é um perigo para quem se vê como detentor da verdade e da bondade.

(Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/lygia-maria/2022/02/a-politica-esta-de-mau-humor.shtml)

terça-feira, 7 de setembro de 2021

Boa história, cheia de games, hackers e invenções:

"A História e o Legado do Atari" 

https://globoplay.globo.com/v/9454259/

"Easy to learn, hard to master" ;-)